Olhe para o homem
com arco e flecha nas mãos,
caçando aviões por entre nuvens,
por cima dos edifícios do centro da cidade.
Um homem em sua caravela
em alto mar azul
dedilha Tristesse com sua guitarra.
Diz-se encantador de sereias,
seus olhos faíscam sentimentalidades.
O homem que varreu o Gólgota, no sábado de aleluia,
desenha montanhas em azulejos
para o revestimento dos altares
das igrejas submersas no mais recente dilúvio.
Aquela mulher da rua dos mortos
usa lenço de cabeça como se santa fosse.
Foi no verão passado,
arruinou um a um os fios de seus cabelos
e chora todos os dias sua prova de amor.
O homem cheio de mágoas noturnas
nomeou setecentas e setenta e oito mil estrelas,
agora as fotografa pacientemente
para o seu álbum de figuras luminares.
Olhe bem aquele homem que recorta palavras raras
e as cola em seu dicionário de filologia
para ferir de poesia os olhos dos cegos,
causar espanto nos mudos,
ouvir dos mortos os silêncios.
Os loucos tocam piano angustiados,
os loucos são ciganos tristes,
os loucos fumam no guindaste amarelo,
Leem Borges e Mario Vargas Llosa.
Os loucos são magros e são gordos,
os loucos são todos fodidos,
os loucos são frágeis como flores,
passeiam sobre cordas bambas.
Os loucos veem a face de Deus no espelho
e viajam na escuridão do dia.
Os loucos põem fogo nos pássaros.
Eles improvisam orações em voz alta,
com nuvens negras lentas ao fundo,
causando esplêndidas turbulências... !
Edmir Carvalho Bezerra
Photography - Christmas Eve – by Lee Jeffries
CONTO DE UMA NOITE ERRANTE
Foi então que veio um deus frio.
Ele determinou, não haveria mais sábado,
não haveria domingo, não existiriam noivados,
nem chuvas finas, nem madrugadas.
As mulheres dormiriam com dragões entre as pernas;
os homens esconderiam seus uivos nas axilas.
Ele arrancou as ervas dos vasos,
ateou fogo nas novenas.
Soltou gafanhotos de gelo que roíam as vozes dos profetas.
Todos o chamaram de louco,
com aqueles músculos de roseiral se contorcendo
- belo e indecente -.
Orgulhoso, distribuiu angústias pelas escadarias.
Quaresma seria o nome de seu cavalo
de quarenta cores,
esvoaços de nódoas brisavam de suas narinas.
As incanduras de suas unhas acirravam a desordem,
sufocavam as rugas das folhas.
Ele mastigava os espinhos e os faróis.
Na alma das águas, fisgava semblantes doentes,
enfileirava na agulha, as gotas de suas cabeleiras,
fazendo um colar muito triste.
Era um deus frio, incandescente,
um agiota retesando o telurismo
- isso é dádiva -
cantava de cima das mágoas.
Um deus a cortar as asas dos relâmpagos.
Com hálito de cinema, com vírgulas entre as línguas.
Irado, enfrentava a fúria das vidraças, o cansaço das sombras,
ascendia às estrelas os peixes eleitos aos rios da loucura.
És o devasso,
o deus frio,
o infrutífero,
a rainha de oito braços,
a mariposa-enigma.
Cálidos, teus dentes mordem a ruína da tarde,
[segues teu introdestino e constróis os ferrões de teu traidor]
de onde receberás o veneno
azul-paredes, o caos amarelo-ilusão.
Os que perambulam nos olhos da noite,
são feitos à tua semelhança e solidão.
Edmir Carvalho Bezerra
RELÓGIOS NÃO SÃO PRECISOS
Amenophis I contava o tempo
com relógios d'água
Babilônia incendiou-se
nas badaladas do meio-dia
clepsidras marcavam tragédias gregas
ampulhetas têm lágrimas de areia
do deserto de Saara
Galileu está cego para vê as horas
Jesus Cristo de tão pobre
não possuía relógio
andava perdido no tempo
após três horas de aflição
deu o último suspiro
relógios marcam tragédias
chineses difundiram a horologia solar
melhor que o sol é seu espectro peregrino
o relógio acelera as estações
o relojoeiro pinga gotas de diazepan
sobre rubis perfurados
molas helicoidais
outrora eram coração
o relógio precisa de sangue
as horas de tragédias
tic-tac arrastado
relógio com febre
em observação
o relógio sofre de amor
as horas não passam
atraso
o calendário não avança
vigésimo terceiro dia
não chega a hora da menstruação
outrora relógios eram precisos
marcavam sonhos
sorrisos
preocupações
encontros
ausências
analógicos
automáticos
atômicos
corda
coração
torres
catedrais
estações de trens
terminais
pararam de narrar acenos de despedidas
não procuram a hora exata das tragédias
água
terra
pedra
sol
pêndulo
pulso
parede
ponto
bolso
corda
ponteiro
quartzo
césio
luxo
coração
relógios deixaram de ser precisos
Edmir Carvalho Bezerra
CRÔNICA SUAVE PARA O SILÊNCIO DESSA MANHÃ
Aos pés da escada que inicia a curva da pequena rua,
três homens conversam: O velho vendedor de gaiolas, o homem que fazia anzóis
e o vendedor de coisas pequenas feitas de insônias.
As palavras despencam de suas bocas e se penduram. Tento entender, mas meu coração chora.
Pente, panela, casca de árvore, aguardente, algodão, lápis de orelha,
alaúde torto, migalhas de nuvens, carvão, filha com asma, remorsos,
pássaros enfeitiçados, barcos que voam, Rosa, santo, rosas, rosas, vazio...
Bem que podiam ofertar suas palavras na porta da igreja,
bem que podiam fazer uma canção para o rio.
Eu digo àqueles homens: O amor é um sol no meu peito,
e revela o que sinto todos os dias quando olho o rio.
Mas esta é apenas uma suave manhã,
vim abraçar minha rua.
Aqui, talvez um deus louco liberte meu canto,
entenda que me dediquei a uma perfeição
e me perdi por uma deliciosa mentira.
Hoje, nessa rua, mais estreita,
não vi estudantes de branco e azul caminhando para o grupo escolar,
passou só um homem com um chapéu de silêncio,
pisando o chão da rua sobre minha velha rua,
Passou o tempo, e o sossego é uma estrela fria em cada porta.
E tudo o que eu queria,
era ver o meu rosto
que ficou dentro daquela casa fechada.
Foto: Monte Alegre PA (rua onde nasci.)
Edmir Carvalho Bezerra
UMA MULHER SE LEVANTA E COMEÇA A CHORAR
Uma mulher caminha dentro da casa,
a noite sem luz, a noite imaterial.
o escuro pesado não interrompe
a canção de ninar que leva para a filha.
acalma o choro fino da dor de menino,
acende as mãos sobre os cabelos infantis,
o filho se cura no colo, como se fosse único.
Uma mulher indormida sonha amanhãs,
mói as lágrimas com a esquina dos dedos,
a madrugada lhe acompanha a lamentar
a idade do feijão espalhado na mesa.
Vela que nutre, silêncio que fala, luz que ama,
amor que é amor, passo certo, leveza e peleja.
Nela, quase oculto, o sorriso do tempo breve.
Uma mulher se levanta e começa a chorar.
Edmir Carvalho Bezerra
CANDURA
Naquela manha o vento nem ensinava pensamentos,
dois cavalos marinhos flutuavam,
ofertando tristezas em troca de duas lagrimas.
Abri os olhos, senti a quentura de um pedaço do céu caindo,
As tristezas se agasalharam bem no meu peito.
Minha vó cuidou que aquilo não eram cantos de passarinhos.
Carregou-me no colo,
fez sinal da cruz em mim com um ramo de alecrim,
depois uma reza de algodão.
Olhou que o sol parecia ainda assustado nos meus olhos.
Minha vó falou que era quebranto.
Entoava a bendição, ungia o enguiço.
minhas mãos fulguravam a candura,
pela janela voava a voz da minha vó.
Edmir Carvalho Bezerra
Arte: Jurga Martin